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Nas ruas quem ensina, quem aprende?
Autor: Revista Cálculo - 01/10/2012

 

Na cidade de Araucária (PR), perto de Curitiba, a professora Luciane Souza de Jesus Telles prometeu ajudar seus alunos a realizar uma pesquisa de campo — eles sairiam da escola para coletar dados, e conversar com as pessoas. Os próprios alunos quiseram estudar as relações entre “trabalho e consumo”, isto é, entre ganhar dinheiro e gastar dinheiro, e por isso Luciane achou que deveria ajudá-los a distinguir entre “gastar dinheiro à toa” e “gastar dinheiro por necessidade”. (Os alunos de Luciane precisavam dessa ajuda, pois são crianças do quarto ano do ensino fundamental.) Ela distribuiu à classe folhetos de supermercados, e pediu a cada aluno que recortasse itens do folheto — como um pacote de arroz, ou um vidro de azeitonas — e colassem cada foto numa folha dividida em duas colunas: uma coluna para itens necessários e outra para itens supérfluos. Um aluno recortou a figura de um sabonete e se aproximou dela:

— Professora, onde eu colo?

A mesma coisa aconteceu com xampu, chuveiro, sal, açúcar. “Eu dizia que eles deveriam colar essas coisas na coluna de itens necessários”, conta Luciane. Mas aí um deles disse que não tinha chuveiro em casa, e que dá para viver sem chuveiro. Outro disse que sua mãe quase não usava açúcar. “E assim, após intensa discussão, muitos produtos que eu classificaria como necessários foram parar na coluna dos itens supérfluos, e vice-versa!”

Muito professor está acostumado não a ensinar, mas a palestrar: ele fala, o aluno ouve; ele propõe questões pelas quais se interessa e para as quais já sabe a resposta, e ao aluno cabe o papel de conversar com o professor sobre tais questões, mesmo que no fundo não se interesse por elas. Num projeto de cunho mais prático, como uma pesquisa de campo, o professor é obrigado a abandonar esse papel — e se transforma em algo parecido com um sargento em campo de batalha: está em posição de autoridade, pode mandar e desmandar, mas não sabe tudo — longe disso. Num projeto assim, diz Luciane, os alunos aprendem e o professor também.

O peso da mochila
Luciane fez parte do projeto Nossa Escola Pesquisa sua Opinião (Nepso), mantido pelo Instituto Paulo Montenegro (do Ibope) em parceria com a ONG Ação Educativa. Uma das funcionárias do Instituto Paulo Montenegro, Fabiana Freitas, diz que o projeto Nepso foi criado para ajudar o professor a usar pesquisas de opinião como recurso pedagógico: o professor escolhe o tema (em geral com a ajuda da classe), e os funcionários do instituto com prática em projetos Nepso dão consultoria técnica. Desde o ano 2000, quando o projeto foi criado, até o fim de 2011, o instituto ajudou 4.108 professores, de 955 escolas, a realizar 1.828 pesquisas — isso tudo com a ajuda de 50.810 alunos.

A professora Luciane e funcionários do Instituto Paulo Montenegro explicam como o projeto funciona, em resumo, e quais seus efeitos sobre os alunos:



[1] Escolha do tema. Quase todos os professores pedem a ajuda dos alunos para escolher o tema da pesquisa, e o motivo é prático: quando o aluno sente que escolheu o tema, ele se dedica mais ao trabalho. Além disso, surgem temas nos quais talvez o professor não pensaria sozinho. Luciane dá exemplos: “Surgem tópicos como reciclagem, lixo na escola, a influência de games violentos, drogas, postura corporal, o peso da mochila, disciplina [no sentido de submissão a um regulamento], escolhas.” Em Pernambuco, segundo funcionários do instituto, os alunos escolheram o tema “gravidez na adolescência”. No Rio de Janeiro, numa escola situada entre duas favelas, escolheram o tema “significado da palavra esperança”. Na zona leste de São Paulo, escolheram “preconceito racial”. Quando as crianças e os adolescentes tomam a iniciativa, diz Fabiana Freitas, o processo de aprendizagem lhes parece mais interessante.

[2] Reportagem sobre o tema. Assim que o tema é escolhido, os consultores do Nepso recomendam ao professor uma “fase de qualificação”, na qual professores e alunos vão pesquisar sobre o assunto escolhido. Eles devem visitar uma biblioteca pública, procurar informações na internet, ver documentários e filmes, organizar passeios a lugares que tenham vinculação com o tema. Com tudo isso, eles ficarão cheios de dúvidas, e essa é uma boa hora para agir como repórteres, e marcar entrevista com especialistas no assunto. Para realizar o projeto “Trabalho e Consumo”, por exemplo, a professora Luciane fez seus alunos analisar mapas que mostravam a distribuição de crianças trabalhadoras, isto é, de trabalhadores com idade entre 5 anos e 17 anos; os mapas mostravam também o grau de escolaridade desses trabalhadores mirins.

[3] Questionário ideal. “Elaborar um bom questionário é um dos maiores obstáculos nesse projeto”, diz Luciane. “Ao chegar nessa etapa, se não estivermos com o tema bem delimitado e qualificado, o questionário acaba ficando confuso.” Para que uma pesquisa funcione, o questionário precisa ser simples, feito de perguntas cuja resposta, depois de tabulada, dará ao entrevistador bom conhecimento sobre o tema. Em 1968, o pintor espanhol Pablo Picasso resumiu bem essa descoberta sobre a importância das perguntas: “Computadores são inúteis. Eles só podem nos dar respostas.” Antes que o questionário esteja pronto, diz Maria Tereza Soares, coordenadora do projeto Nepso no Paraná, o professor e os alunos provavelmente vão criar várias versões, e isso é bom: essa etapa ajuda o aluno a se convencer de que as perguntas, por mais simples e diretas que sejam, são as melhores possíveis. “Para que uma pesquisa funcione”, diz Maria Tereza, “o entrevistador precisa estar convencido de que deve se restringir estritamente à pergunta escrita; ele deve também aprender a ouvir uma opinião que muitas vezes não é a dele.”

[4] Trabalho de campo. No projeto “Trabalho e Consumo”, a professora Luciane e seus alunos combinaram de ir a supermercados para anotar três preços a respeito dos itens necessários e supérfluos: o preço da marca mais cara, o preço da marca mais barata e o preço de uma marca que ficasse entre as duas. Fazendo isso, os alunos deduziram por si próprios uma ideia importante: é possível desperdiçar ao comprar produtos necessários (basta comprar o mais caro, quando um mais barato satisfaria a necessidade), assim como é possível economizar ao comprar produtos supérfluos (basta comprar o mais barato, caso ele sacie os desejos do comprador). Nessa fase, o aluno aprende a distinguir população de amostra: a população é o conjunto sobre o qual os pesquisadores querem inferir afirmações e, para fazer isso, eles farão medições numa amostra desse conjunto. Eles também podem usar a amostra para aceitar ou rejeitar uma hipótese a respeito da população. Além disso, quase sempre é impossível medir todos os elementos da população, e por isso o pesquisador não tem escolha senão medir o que deseja medir apenas numa amostra da população.

[5] Tratamento dos dados. Entre as fases do projeto, diz Luciane, está “tratar os dados, analisar os resultados e elaborar um plano de ação a partir dos dados”. Na mente de um adulto, tais palavras evocam a imagem de colegas de trabalho discutindo os dados num escritório. Com crianças, contudo, o método deve ser outro: elas têm de fazer coisas mais práticas. Luciane juntou os alunos em duplas e ajudou cada dupla a imaginar “situações-problema”, isto é, cada dupla imaginou perguntas às quais as outras duplas poderiam responder, caso examinassem os dados com atenção. Em algumas dessas atividades, eles puderam usar uma calculadora. Por fim, os alunos simularam a compra e a venda dos produtos pesquisados, mas usando, nas palavras de Luciane, “dinheirinho de brinquedo”.

Ela soube que o projeto ia bem pelo que aconteceu depois: os alunos perguntaram à professora se não haveria um jeito de realizar transações comerciais de verdade, com dinheiro de verdade. Luciane conversou com a diretora, que conseguiu produtos em consignação, como carrinhos, bonecas, figurinhas, pares de meia. A escola organizou um bazar, e os alunos puderam vender os produtos consignados para colegas da própria escola. Ao final do bazar, eles deveriam prestar contas do estoque e do faturamento (a tabela abaixo mostra os resultados de um dos alunos). Esse bazar deixou os estudantes motivados, diz Luciane. “É bom trabalhar com situações matemáticas reais.”

Mas o “plano de ação a partir dos dados” não se limitou às situações-problema e ao bazar: depois de pensar sobre trabalho e consumo, as crianças passaram a encostar os pais na parede. Essa história apareceu numa reunião entre pais e professores. “Os filhos”, diz Luciane, “passaram a fazer cobranças em relação ao consumismo dos pais.”

O saber da estatística
Ao trabalhar numa pesquisa de opinião, o aluno pratica vários tópicos de matemática: ele coleta, armazena e trata dados, como um técnico em informática; realiza operações aritméticas básicas, como um contador; maneja gráficos, frações, médias e porcentagens, como um estatístico; escolhe o gráfico mais adequado para um conjunto de dados, e prepara uma apresentação, como um executivo. Ele depara com problemas bem práticos: se começa o eixo x com o número 0, mas começa o eixo y com o número 1, o gráfico distorcerá os dados. Ele lê muito. Segundo Maria Tereza Soares, ao longo do projeto, o aluno se habitua a usar matemática; se tiver sorte, talvez perceba que a matemática enriquece o dia a dia.

Os professores também aprendem. Maria Tereza já lidou com professores do ensino fundamental 1 (a quem cabe ensinar matemática para crianças do 1º ao 5º ano, ou da pré-escola à 4ª série) que não sabiam direito o que era porcentagem. Tais professores achavam que “porcento” e “porcentagem” só devem ser usados quando lidam com conjuntos de 100 unidades, ou no máximo com múltiplos de 100. “Esses professores queriam delimitar o número de entrevistados a 100 pessoas.” Com o projeto, o professor percebe que, se não entende nem mesmo a ideia de porcentagem, como poderá ajudar seus alunos a realizar um projeto Nepso? Então ele passa a estudar matemática com outros olhos, e às vezes até descobre que tem usado material didático antiquado ou inadequado, ou que tem ensinado os assuntos da matemática numa ordem imprópria.

Em Araucária, a professora Luciane Telles leu o livro O Ensino de Estatística no Contexto da Educação Matemática, de Maria Lúcia Lorenzetti Wodewotzki e Otávio Roberto Jacobini. Os autores justificam de várias maneiras as aulas de estatística para crianças e adolescentes, mas Luciane se impressionou mais com uma das justificativas: o homem só consegue compreender fenômenos muito complexos, de natureza aleatória, por meio da estatística. “Os autores ressaltam que o ensino de estatística dá oportunidade para reflexões e críticas, especialmente quando tratamos de fenômenos de ordem social.” Em outras palavras, só com estatística o homem pode compreender melhor a sociedade em que vive.

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